segunda-feira, 28 de julho de 2008

A COMUNIDADE YUBA - UM EXEMPLO PARA O MUNDO!

Cultivo de sonhos
Katsuo Takimoto é um
dos moradores mais
velhos da Comunidade
Yuba. E carrega consigo
a história de uma das
mais bem-sucedidas
experiências de vida
comunitária no Brasil,
onde o cultivo do campo
e da arte têm igual valor.

Lavrando Arte
Inspirada em Rousseau, Marx, na Bíblia e nos kibutzim
israelenses, uma comunidade de japoneses e descendentes
no interior de São Paulo dedica-se a plantar sonhos
e colher arte.

texto : Lucille Kanzawa, de Mirandópolis


Quando não estão cultivando a terra, os 70 moradores
desta comunidade dedicam-se à dança, à música, ao teatro,
à literatura e à pintura.

Imagine um lugar onde as pessoas trabalham sem salário,
mas todos têm casa,comida e assistência médica garantidas.
Ninguém recebe ordens de ninguém.Cada um ajuda como pode,
conforme a idade permite. Nas horas de folga, todos
se dedicam à dança, à música, à pintura, à leitura e
ao teatro. A arte,aqui, se cultiva com tanto esmero quanto
o plantio de frutas e legumes. Quem chega logo percebe que
a entrada é livre. Não há muros nem portões. A única ba-
rreira pode ser o idioma, caso você não fale japonês. A
sensação é a de ter atracado na mítica ilha de Utopia,
idealizada no século 16 pelo escritor inglês Thomas More.
Ou talvez de descobrir um insólito kibutz israelense onde
todos seus habitantes falam japonês. Mas basta conviver
por algum tempo com os 70 moradores da Comunidade Yuba,
nos arredores deMirandópolis, no interior de São Paulo,
para aprender que esses
imigrantes e descendentes de japoneses nada fazem senão
cumprir a missão de manter viva a ideologia semeada há
oito décadas por seu fundador, Issamu Yuba: cultivar a
terra, orar e amar as artes.

Antes mesmo de o sol nascer, Katsuo Takimoto, de 82 anos,
já está de pé fazendo sua sagrada ginástica matinal.
Quando às 6h15 o som de um berrante
anuncia que o café da manhã está na mesa,
Kuma-san ("urso", em japonês),como Takimoto é chamado por
todos,é um dos primeiros a chegar ao grande refeitório.
De formação cristã, é ele quem faz a primeira oração do
dia e convoca a todos para um minuto de silêncio.


Quando não estão cultivando
a terra, os 70 moradores desta
comunidade dedicam-se à dança,
à música, ao teatro, à literatura
e à pintura

As mesas e os bancos são longos, a comida é farta. O
café e o leite são produção própria. O pão foi assado
no forno a lenha e o queijo e as geléias foram preparados
pelas mulheresque se revezam semanalmente na cozinha.
Ovo cozido não podefaltar,e vem da pequena granja que em
outros tempos já foi a maior da América Latina.
Para os que preferem um cardápio mais oriental,há arroz,
sopa de soja e peixe.As crianças e os adolescentes são
os mais apressados:logo passará o ônibusque os levará
à escola estadual próxima à fazenda.

Os que ficam já conhecem bem suas tarefas. Trabalhar não é
obrigatório. Se alguém quiser dormir durante o dia, ninguém
irá criticá-lo por isso. Mas todos sabem de cor as palavras
do fundador que dizem que "a liberdade depende da responsa-
bilidade de cada um". Katsue, Keiko, Yo, Yassuko e Hana-tian
começam então a cuidar da limpeza e da preparação do almoço,
enquanto Podin e Emi correm para a lavanderia coletiva.
Kuma-san sai de fininho e, como todo dia, se dirige a um
galpão bem rústico onde um piano de cauda divide o mesmo abrigo
com máquinas agrícolas. Enquanto dedilha concentrado a "Sonata
ao Luar" de Beethoven, luzes potentes se acendem. É Yuzo quem
entra para dividir a cena e secar os grãos de feijão azuki que
há dias cobrem o grande palco de madeira. As cortinas se fecham,
as luzes se apagam. As mão de Kuma-san agora estão prontas para
fazer pequenos reparos no galinheiro, enquanto as de Yuzo vão
se juntar às dos outros companheiros na lavoura.


só japonês
Com 100 anos de idade, Tatsukichi
Naganawa é o morador mais velho
da comunidade. Como todos os de
sua geração, ele não fala
português. Passa o dia lendo
algum dos 10 mil livros em
japonês que circulam pelo lugar.

Missao e Hiroshi já estão na horta escolhendo as verduras
e os legumes para o almoço. Helen, Nozomi, Mie, Assaka e
Maurício fazem parte do mutirão de jovens que todos os dias
vão trabalhar na colheita de goiaba, principal fonte de
renda da comunidade. Mitsue cuida dos suínos, enquanto Flávio,
Lintaro e Kogiro se ocupam do gado leiteiro. Tsuji, Saki,
Junko e Evelyn garantem a produção do cogumelo shitake.
Fujiko pode estar na granja ou cortando lenha.
Douglas, Daigo e Issamu Yazaki já estão prontos para
entregar os produtos colhidos nos supermercados da região
de Mirandópolis.Amanhã tudo será diferente, e cada um dos
moradores estará em outro lugar.
Com poucas exceções, as pessoas trabalham num sistema de
rodízio para garantir que todos aprendam um pouco de cada
função.

Às 12h15 o mesmo berrante da manhã avisa que é hora do almoço.
No cardápio,pratos japoneses se misturam a brasileiros.
Hashis, os tradicionais palitos,confundem-se com garfos e facas.
Mas a língua é uma só: o japonês. Muitos moradores nem sequer
falam português. Depois da refeição, o salão pulsa como
nunca. Esse é o coração da Comunidade Yuba, e há tempo e
espaço de sobra para um bate-papo, uma sessão de vídeo,
um ensaio rápido de canto e piano,trabalhos artesanais e
até um corte de cabelo. Isso quando não acontece um
batizado, um casamento ou um velório. Mitsue aproveita
o tempo livre para fazer cerâmica, enquanto Maurício põe
em prática as habilidades que aprendeu
com o tio na oficina de luteria.


vida comunitária
Todo dia, o berrante anuncia
a hora de acordar e a das
refeições. A vida é a mesma de
uma fazenda, mas tudo aqui é
comunitário, do serviço ao lucro..

Os estímulos estão por toda parte e as vocações são
cultivadas onde quer queelas se manifestem. Seja na
varanda de uma casa, num jardim de esculturas,numa
oficina mecânica, num treino de beisebol, seja na
biblioteca de mais de10 mil títulos (a maioria doados
e em língua japonesa). As crianças têm aulas de música,
balé, pintura e do idioma japonês desde cedo, mas também
são educadas a cuidar da horta e a realizar pequenas
tarefas, como limpar as mesas e recolher as roupas do varal.
Para Assaka Yuba, mãe de seis filhos, é importante que
a criança aprenda a se conscientizar da importância da
participação de cada um na vida comunitária. Ela sempre
viu tudo com muita naturalidade, nunca como obrigação.
"Dedicar-nos à arte e ao trabalho é como
respirar e comer. É nossa vida", diz.

Para a maioria dos adultos, as atividades artísticas
só começam mesmo à noite. Por isso, após um belo banho
de ofurô e do jantar, sempre há música
no ar. Pode vir do clarinete de Tsuji, da flauta
transversal de Nozomi, do piano de Fujiko, do violoncelo
de Assaka, do acordeão de Keiko, do violino
de Massakatsu ou de um grupo de coral. As segundas,
quartas e sextas são sempre reservadas às aulas de balé,
carro-chefe da Comunidade Yuba. Quem
comanda é a bailarina Akiko Ohara, de 68 anos.

Formada em dança contemporânea em Tóquio, ex-colega de
palco de mestres da dança como Tatsumi Hijikata e Kazuo
Ono, ela chegou à comunidade em 1961 como marido e escultor,
Hisao Ohara, e revolucionou a vida artística de seus
integrantes. Segundo Akiko, no Japão sua dança era cercada
de limites.Procurava o que queria expressar e nunca encontrava.
Aqui viu tudo muitolimpo, puro, aberto e sentiu-se livre para
fazer nascer o que é o hoje o Balé Yuba. Graças a seu alto
nível técnico e artístico e à sua versatilidade, o grupo já
fez 750 apresentações pelo Brasil e pelo Japão e
já teve cenários desenhados por artistas renomados,
como Manabu Mabe e Yashika Takaoka.


música na horta
A música é uma das artes mais
presentes na vida da comunidade.
As mesmas mãos que colhem
verduras mais tarde dedilham
violinos e violoncelos.

Liberdade é o que também buscava Yoshiki Tsuji,
de 53 anos, quando em 1975saiu do Japão para dar
a volta ao mundo. Parte dela de bicicleta. Após quase
cinco anos viajando por lugares como Paquistão,
Afeganistão, Irã, Grécia e África, Yoshiki veio parar
na Comunidade Yuba. A intenção de passar algumas
semanas por aqui acabou transformando-se em meses
e depois em anos, quando decidiu casar-se com Junko Yuba.
Hoje tem quatro filhos, responde pelo
cultivo de shitake e nem pensa em sair daqui.

Masakatsu Yasaki, de 61 anos, também foi um dos forasteiros
que vieram do Oriente e acabaram se identificando com o que
alguns chamam de "Yubaísmo".Quando chegou aqui em 1963,
aos 19 anos, ele já tocava violão e só pensava
em aprimorar sua técnica, mas aprendeu com o mestre Issamu
Yuba que "técnica é diferente de arte", que "um lavrador
tem que ser artista" e que "a arte nasce da terra e deve
viver da terra". Depois de fazer crescer uma plantação
inteira de arroz, Masakatsu entendeu por fim o sentido
das frases. "Foi comoescrever um poema numa folha de
papel em branco", lembra.

Casado com Keiko, sobrinha de Issamu Yuba, Masakatsu
é hoje o mais versátil dos moradores da comunidade.
Sapateiro, violinista, compositor, regente da orquestra
mirim, fotógrafo, cinegrafista, sonoplasta: o currículo
é vasto.Não é por acaso que ele se tornou o responsável
pelo acervo de documentos,
fitas de vídeo e reportagens sobre a Comunidade Yuba.


o mesmo palco
Durante o ano, o palco do teatro
serve também para a secagem
de grãos (acima).
É o mesmo palco onde, no Natal,
quatro gerações de Yubas
mostram sua arte.
As crianças aprendem desde
cedo a trabalhar a terra
e o talento artístico.

Mas é ali fora, a céu aberto, que estão expostos
os documentos mais concretos e expressivos do lugar:
as esculturas de Hisao Ohara, que ocupam
um jardim projetado pelo artista plástico
Kazuo Wakabayashi. Formado pela Universidade de Tóquio,
Hisao encontrou na comunidade a paz e a
tranqüilidade que buscava e viu na natureza sua fonte
de inspiração.Escolheu o granito para expressar sua arte.
"Por ser um material rebelde, dou-lhe formas suaves", dizia.
Nos 28 anos em que viveu aqui, esculpiu
sempre debaixo de uma grevílea. No dia seguinte à sua morte,
em 1989, a árvore começou a secar e também morreu.

Essa história transformou-se num dos contos do livro Katsue
e seus Contos,de Renata Katsue Yuba, filha do fundador.
No universo que criou dentro da casa que ela mesma construiu,
Renata pinta, canta e escreve com refinada sensibilidade.
"Meu pai sempre me dizia: ´Converse com Deus. Converse com a
natureza. Procure você dentro da arte e da oração'." E foi na
arte que ela encontrou a facilidade de convivência com os demais
companheiros. "Quando estamos no palco, todas as divergências
que existem entre nós desaparecem."

A advogada Satiko Yuba, relações públicas da comunidade,
explica que as discordâncias existem como em toda casa,
com a diferença que esta é uma grande família.
"Fazemos de tudo para conviver em harmonia, porque sabemos
que disso depende nossa sobrevivência. Conflitos geram
desintegração", diz.Ela conta que há 20 anos mudou-se
para cá quando se casou com Sérgio Yuba,um dos filhos do
patriarca. "Foi como se tivesse me casado com cem pessoas,
cada uma com seus pensamentos e manias. Tive que mudar
para poder seguir o estilo de vida dos Yubas.
Todo dia é uma grande lição."


Hoje Satiko é a primeira-secretária da associação que
a comunidade criou após a morte do último líder,
Tetsuhiko Yuba, filho de Issamu, em 2003. Ela assim como
todos os membros da diretoria, chegaram à conclusão de que
precisam dar condições para que os jovens que foram embora
voltem. Além disso, há uma preocupação em incentivá-los
a se casar com pessoas de fora,uma vez que a maioria
qui já se tornou parente.

Luís Yuba, sobrinho de Issamu, que, além de trabalhar
nas plantações de abóbora, milho verde e mandioca,
é presidente da associação vai mais longe:
"Para garantir o futuro, temos que mudar. A realidade
existe e não podemosficar aqui sonhando num mundo de utopia.
Cada um tem que ser responsável por si e pela comunidade".
Para ele, a Comunidade Yuba não é nenhum modelo de
sociedade e, para os que chegam aqui tentando defini-la,
ele logo diz: "É apenas um lugar com uma maneira diferente
de se viver". E resume: "Sempre nos ensinaram que o dinheiro
era o grande mal da humanidade, mas infelizmente precisamos
dele também". Se o progresso material vem a passoslentos e
com muitos tropeços ­ porque nunca foi a prioridade dos Yubas ­,
as conquistas que eles tiveram nos campos artístico e espiritual
são inegavelmente ilimitadas.

Quando chega o Natal e as cortinas do palco do velho barracão
se abrem, as quatro gerações que se apresentam são a prova
viva de que o sonho de Issamu Yuba ainda consegue resistir
ao tempo e às ordens do capitalismo. Aqui não há leis,
concorrências, disputas ou ambições mesquinhas. Todos contribuem
para o bem-estar coletivo sem deixar de respeitar a individualidade
de cada um. Assim como Hisao Ohara deu formas sublimes à dureza
do granito, esses bravos lavradores conseguem nos mostrar que,
unidos na alegria e na tristeza, é possível cultivar no mundo
primitivo do campo a mais refinada
forma de arte.

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