sábado, 26 de janeiro de 2008

Testamento de um Ciclista




Pedalando pelas ruas (ainda) ameaçadoras do Rio, me veio a idéia de escrever um testamento. Doaria meus órgãos. O que mais? Entre idéias bestas havia a de pedir para mandar uma despedida às listas de discussão pró-bicicleta. Eu saía do filme "Diários de Motocicleta" e pensava em revoluções.

Foi na luta pelas bicicletas -e pedestres- contra o uso abusivo automóveis que me senti, em toda vida, mais próximo de um mundo melhor. Foi nas bicicletas que estive mais próximo das pessoas, pobres ou ricas, de um mundo com mais saúde, mais são. Acreditem, ciclo-amigos, a bicicleta tem não só o potencial de redimir a humanidade de ser os carrapatos de Gaia (1), mas também de deixar de ser a humanidade o carrapato de si mesma! Ninguém joga bomba no oriente médio pela bicicleta. Ninguém joga aviões em prédios pela bicicleta. Nem pedir dinheiro no sinal pedem!

Usar o carro sem ter necessidades realmente especiais é crime lesa-humanidade. Não se iluda. As crianças trabalham nas carvoarias que alimentam as aciarias, que alimentam as forjarias, que alimentam as montadoras, que seguem parindo escapamentos pelas suas chaminés, que alimentam as UTIs, o efeito estufa e se alimentam de toda a humanidade. O trabalho infantil é só a ponta de um iceberg, que transporta 30% dos brasileiros mais ricos e congestiona as ruas dos demais ao tomar 70% do espaço disponível. Não adianta que não tem para todos. Todo mundo quer andar de carro, mas ninguém quer morar ao lado da avenida. Quantas quadras de esporte cabem em cada estacionamento? Sua vaga em sua sala de estar? Quantas crianças foram privadas de brincar na rua? Quantas bicicletas uma pessoa precisa durante toda a sua vida? Quantas bicicletas se faz com um carro de uma tonelada de aço?

Sobre uma bicicleta gasta-se pouco. Pouco do ambiente, da saúde, dos nervos. Gasta-se pouco dinheiro, aquele dinheiro que seria vertido através das bombas (bombas!) de combustível para os baús de nossas senhoras feudais, as Irmãs do petróleo, como se fossem impostos pagos por todos seus súditos. "Quer viver? Então pague!" Hoje não! Hoje gastei o dinheiro do ônibus para tomar uma vitamina de abacate! Se fosse a gasolina do carro, daria para um suco de fruta-do-conde e um salgado. Com o IPVA? Troco de computador! E o seguro? Fernando de Noronha! Com o carro? Uma piscina em casa! Seria um mal necessário? Que é um mal, concordamos.

Pela bicicleta li muito. Se pudesse ler pedalando leria mais, mas tem a paisagem para ser vista...Li que o dono de um carro gasta mais de três meses por ano para comprá-lo, mantê-lo e ficar preso dentro dele no trânsito. Quem é dono de quem? Li que se pegarmos toda a distância anual percorrida de carro por um norte-americano e dividirmos por este tempo de três meses, chegaremos à razão de 6km/h: a velocidade de uma pessoa à pé. Corremos tanto para chegar aonde, se o que espera a todos é o túmulo? Li que meia hora diária de exercícios reduz em 50% a chance de termos diabetes, obesidade ou problemas cardíacos, prolongando a vida. Calculei que nessa meia hora um ciclista anda 10km (a 20km/h), quando o deslocamento médio nas cidades é de somente 8km (a 7km/h). Li que 80% da poluição urbana vem dos automóveis. "Ecosport", trouxas! Li, em uma explanação contundente, que quanto mais energia um povo gasta, menos participação ele tem nas decisões sobre seu futuro - Energia y equidad.

Mas, afinal, o que deixo em testamento? Abandonei uma carreira de multinacional, mas nem por isso teria grandes fortunas para meus descendentes. Talvez minha pior mácula seja a de ainda não ter descendentes de sangue. Mas, do fundo do coração, o que eu deixo vai muito além da fortuna e será aproveitado por todos os descendentes do planeta. Um mundo melhor, por um pouquinho que seja. Este mundo melhor, o propelente de meus pedais, que conquistei a cada volta.

Uma vez ouvi numa palestra que se todo revolucionário plantasse uma horta o mundo seria outro. Pois subam nas bicicletas também, revolucionários! Nossa arma é o pedal, nossa trincheira o guidon, nosso alvo: o mundo! Enquanto somos atacados por todos os lados por buzinas, vales transporte, finas de para-choques, chingamentos, disparamos: ra-ta-ta-tá! "Ra-ta-ta-tá"? Não! Bicicleta faz "Trling, trling... Com licença colega!... trling." Uma arma lenta, mas eficaz e permanente!

Dizem que perguntaram à Madre Teresa de Calcutá:
-"Como se faz para mudar o mundo?"
-"É fácil: eu mudo eu. você muda você."

Um dia verão: "mudamos"!

Um forte ciclo-abraço para todos, meus amigos!

C. Dion Teles
Cicloativista



(1) Gaia - Nome vindo da mitologia grega e dado ao planeta Terra ao considerá-lo um ser vivo em si.


Fonte: www.pedal.com.br

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